Na última quarta-feira (08), uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) movimentou as redes sociais, causando diversas reações, para dizer o mínimo.
Por 6 votos a 3, no julgamento dos EREsp 1.886.929 e EREsp 1.889.704, a Segunda Seção do STJ decidiu que o rol procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é taxativo, de forma que as operadores de saúde não estarão obrigadas a cobrir tratamentos não previstos no rol. A decisão, porém, contém exceções.
O que é o “rol da ANS”?
A ANS é a agência nacional responsável pela regulação do setor chamado de “saúde suplementar”. Ou seja, serviços de saúde providenciados e acessados apenas pelo meio privado. Note que a ANS possui o “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde”, que garante e torna público todos os procedimentos mínimos (exames, consultas, terapias, cirurgias, etc) que os planos de saúde, contratados a partir de 1º de janeiro de 1999, são obrigados a oferecer nos termos da Lei nº 9.656/1998.
Esse rol é comumente alterado com a inclusão ou exclusão de procedimentos, sendo que a última alteração ocorreu pela Resolução Normativa (RN) nº 465/2021.
O rol da ANS é algo com que quase todo brasileiro precisa lidar quando precisa recorrer ao plano de saúde. Não raro, os planos negam a cobertura a determinados procedimentos sob o fundamento de que estes não constam do rol da ANS. Essa negativa de cobertura ocorre mesmo que o procedimento seja prescrito pelo médico e estando o paciente sob risco de vida.
A saída para situações de negativa de cobertura são estreitas, e acabam levando o cidadão a recorrer ao Poder Judiciário para que obrigue o plano de saúde a autorizar o procedimento prescrito ao paciente. Quem já precisou recorrer a um juiz para conseguir a autorização para uma cirurgia ou tratamento urgente sabe da apreensão que é até conseguir a chamada “liminar” e, ao final, uma sentença de procedência.
Rol taxativo ou exemplificativo? Qual a diferença?
No entendimento dos planos de saúde, o rol da ANS teria uma natureza taxativa. Consequentemente, os planos só estariam obrigados à cobertura dos procedimentos e eventos médicos lá descritos expressamente.
Desse modo, podemos dizer que um rol taxativo seria uma lista de opções fechada ou rígida. Essa interpretação, segundo os planos de saúde, garante a segurança jurídica para as seguradoras, que sabem exatamente quais são os tratamentos que obrigatoriamente terão que cobrir.
Já o rol exemplificativo descreve procedimentos e eventos como algumas das possibilidades existentes, como exemplos dos tratamentos aos quais os planos estão obrigados a cobrir. Em função disso, diversos Tribunais têm adotado o entendimento de que a natureza do rol da ANS deve ser interpretada como exemplificativa.
O médico como autoridade e seu papel no cenário de taxatividade
O posicionamento do STJ, como Corte Superior, serve para direcionar as decisões dos Tribunais Estaduais. Porém, mesmo diante da interpretação sobre a taxatividade do rol da ANS, o STJ estabeleceu alguns parâmetros importantes para análise caso a caso. Um deles foi o papel do médico como autoridade e responsável por indicar o tratamento mais indicado para o paciente.
Na área médica, o Código de Ética Médica estabelece que a medicina enquanto profissão que se coloca a serviço da saúde do ser humano, e o médico é profissional que deve zelar e trabalhar, com autonomia e liberdade, pela saúde e dignidade do paciente (incs. I a VII, Capítulo I).
Além disso, o referido Código dispõe que é direito do médico “indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente” (inc. II, Capítulo II).
Dessa forma, o médico figura como uma autoridade frente ao paciente, com o papel de promover seus melhores esforços a fim de zelar pela saúde e indicar o tratamento mais adequado à enfermidade que acomete a pessoa.
O que acontece quando o plano de saúde não autoriza a cobertura de um tratamento?
Porém, pode ocorrer um problema quando o médico prescreve um procedimento ou tratamento, e o plano de saúde nega a cobertura do tratamento por não estarem incluídos no rol da ANS, cuja natureza o STJ entendeu taxativa.
Em relação a esse embate, muitos Tribunais manifestam o entendimento de que o papel e a recomendação da autoridade médica estão acima dos limites do rol da ANS.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, entende que o rol da ANS é exemplificativo.
Por esse motivo, fimou nesse sentido as Súmulas nº 96 (Havendo expressa indicação médica, não prevalece a negativa de cobertura do custeio ou fornecimento de medicamentos associados a tratamento) e nº 102 (Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS).
Consequentemente, a taxatividade do rol da ANS acaba sendo mitigada.
O que o STJ decidiu sobre o rol da ANS?
No julgamento dos EREsp 1.886.929 e EREsp 1.889.704, o STJ definiu que:
- O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;
- A operadora de plano ou seguro de saúde não está obrigada a cobrir tratamento fora do rol da ANS se já existir, para a cura do paciente, outro procedimento, eficaz, efetivo e seguro já incorporado àquele rol;
- Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, poderá haver a cobertura excepcional de tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que não tenha sido indeferido expressamente pela ANS, sua incorporação no rol de procedimentos; tenha sido comprovada eficácia por evidências médicas; e que haja recomendação de órgãos médicos de renome nacional e internacional.
De fato, a decisão acima deixa ainda mais estreita a possibilidade de acesso de pacientes a tratamentos inovadores ou eficazes, e que não estejam previstos no rol da ANS.
Apesar disso, a taxatividade não parece se colocar totalmente à frente da autoridade médica, por meio da qual se excepcionaria ou condicionaria as hipóteses de negativa de cobertura de procedimento não previsto no temido rol.
Note-se que os planos não estão obrigados a cobrir tratamento fora do rol da ANS se já houver outra opção no rol que dê a possibilidade de cura com eficácia, efetiviade e segurança. Porém, compete ao médico, e não ao plano de saúde, dizer qual o procedimento mais adequado para a cura daquele paciente específico.
Logo, se o procedimento existente no rol da ANS não for classificado pelo médico como adequado ao paciente e houver um procedimento fora do rol, então, a taxatividade estaria mitigada.
Além disso, só o médico, e não o plano de saúde, poderia validar a eficácia de um tratamento com base em evidências médicas. Isso que poderia excepcionar a taxatividade do rol se o médico verificar que determinado tratamento fora dele é eficaz e aplicável com base em evidências científicas.
Por fim, ainda mencionamos que negativa de vigência a procedimentos fora do rol está condicionada à negativa expressa da ANS, pelo que eventual omissão do rol poderia enfraquecer a taxatividade, com efeito, a negativa de cobertura.
O posicionamento do STJ não é inédito
Como veremos o posicionamento do STJ sobre o rol da ANS não é algo tão inédito assim e pode vir a ter algumas reviravoltas.
Não é de agora o entendimento do STJ de que o rol de procedimentos da ANS é taxativo. Desde 2019, no julgamento do Recurso Especial n. 1733013/PR, a Quarta Turma do STJ passou a interpretar suas decisões em favor da taxatividade do rol da ANS, em discordância do que entendia a 3ª Turma, que reafirmava seu entendimento sobre a não taxatividade do rol no julgamento do Recurso Especial n. 1829583/SP.
Essa divergência, além de revelar inconsistências internas na jurisprudência do STJ que são reconhecidas pelos Tribunais ordinários, mostra que a matéria da taxatividade do rol do STJ não é tão inédita assim.
Qual o posicionamento dos Tribunais Estaduais?
Para além disso, importante destacarmos que diversos Tribunais, mesmo reconhecendo a orientação do STJ sobre a taxatividade, decidiram de forma diversa, sob o fundamento de que nem todo entendimento do STJ é vinculante. Ainda mais se não tiver sido proferido sob o rito de recursos repetitivos ou repercussão geral, e o de que os Tribunais de Justiça possuem autonomia nesse para decidirem sobre as questões que são levadas ao seu conhecimento.
Essa autonomia dos Tribunais Estaduais ocorre ao ponto de terem até mesmo conteúdo sumulado sobre o assunto da taxatibidade do rol da ANS, como mencionamos acima.
Agora, cabe observar se a nova decisão do STJ trará novos impactos ou se cairá no bolsão da inconsistência jurisprudencial, deixando os cidadãos à mercê de tais divergências em julgamentos de casos análogos ou idênticos.
Por fim, ainda será necessário reforçar a atenção às demandas de plano de saúde que sobem ao STJ, pois diante da decisão dessa semana, as chances de êxito e reversão de julgados eventualmente desfavoráveis aos planos podem aumentar.
Possibilidade de mudança da decisão do STJ
Recentemente, foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 7088 em face do art. 10, parágrafos 4°, 7° e 8°, da Lei n° 14.307/2022, a qual dispõe sobre o processo de atualização das coberturas no âmbito da saúde suplementar.
A ADI tem por finalidade declarar que uma lei ou parte dela, ou ainda um ato normativo é inconstitucional. Ainda não ocorreu o julgamento dessa ADI n° 7088, mas em resumo, se discute sobre os artigos da lei que tornam o rol da ANS taxativo.
Dessa forma, o julgamento da respectiva ADI abarcará sobre a inconstitucionalidade da norma mencionada, para que o rol da ANS seja considerado exemplificativo, podendo mudar o rumo das decisões do STJ.
Só o tempo dirá.
Referências
https://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Biblioteca/Biblioteca/Legislacao/SumulasTJSP.pdf
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6358147